“A irracionalidade e a submissão caminham juntas”, afirma Celso Amorim sobre a atual diplomacia brasileira

celso amorim
Imagem: Comunicação da Intersindical
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O Secretário Geral da Intersindical, Edson Carneiro Índio entrevistou Celso Amorim, diplomata de carreira, Ex-ministro da Relações Exteriores e da Defesa, que analisou a situação das relações diplomáticas brasileira sob o governo de Bolsonaro.

Índio: Recentemente o senhor assinou um artigo importante, muito contundente com praticamente todos os ex-ministros das Relações Exteriores da Nova República. O senhor, e os demais signatários daquele artigo, colocava a diplomacia brasileira e a política externa do Governo Bolsonaro como algo que viola os princípios das relações internacionais estabelecidas pela Constituição de 1988. Gostaria que o Senhor comentasse essa situação do país, da política externa,  dessa irracionalidade e total subserviência aos interesses de Donald Trump, que marcam  política externa de Bolsonaro.

Celso Amorim – Antes de responder sua pergunta, deixa eu falar um pouquinho sobre outro assunto. Eu queria fazer um comentário; abrindo aqui essas redes que reproduzem notícias do New York Times, li que o Brasil estaria comprando, não sei a quantidade, ou recebendo graça, uma quantidade enorme de cloroquina, ou hidroxicloroquina, ou daquela dos Estados Unidos.Isso é uma coisa tão absurda, que a gente fica chocado, porque o Brasil será a cobaia para uma coisa já descartada pela OMS e por países desenvolvidos como a França, que  já fizeram os testes, e já descartaram a substância como produto de tratamento do COVID-19. Fico muito preocupado com isso, é uma coisa absurda.

Agora em relação a sua pergunta, eu acredito que é irracional o que está acontecendo na relações exteriores. A irracionalidade e a submissão caminham juntas. Pode até ter alguma racionalidade, do ponto de vista dos indivíduos que estão no poder, do grupo que está no poder, obviamente o símbolo maior é o presidente Jair bolsonaro. Agora às vezes a racionalidade individual é totalmente contrária à racionalidade coletiva. É o que nós estamos vendo.

Esta iniciativa que você apontou, foi uma esforço para estabelecer o debate entre as pessoas que tinham maior participação política externa.  Começou com debate só entre três chanceleres, depois foram agregando outras personalidades.  Todo o debate ocorreu com grande sensibilidade e com a grande compreensão de que todas essas pessoas, embora tenho ideias diferentes, que em muitos aspectos  são muito diferentes, mas elas comungam de uma mesma visão de respeito à Constituição Brasileira e simplesmente a grande tradição da política externa brasileira. A política externa os atores com que a gente se relaciona, os regionalismos, isso pode variar, mas os grandes princípios estão lá, está lá com o Rio Branco, foram princípios reafirmados e atualizados, mas recentemente por Santiago Dantas. Mesmo no período militar, tirando o comecinho ali, pelo menos tivemos uma política externa digna. Mesmos com todas as críticas aos governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique, dos quais participava do corpo diplomático, não me envergonhei, mas o que acontece hoje é o absurdo. 

O Brasil critica a OMS somente para agradar o Trump, mas nada. Para mim é profunda  a  relação do atual governo com a extrema direita norte-americana, acho que isso não é só ideológico, tem mais coisas aí, porque não é possível uma coisa tão contrária aos interesses do Brasil. O Brasil sempre teve uma liderança na área de promoção da Saúde, eu vou lhe dizer, o governo atual se nega a assinar uma resolução do México porque nela está citada a OMS. Poderíamos citar ainda a relação com a Venezuela, os comentários racistas de um ministro em relação a China, nosso principal parceiro comercial, coisa que não tem cabimento. Então, essa percepção de conjunto levou todos esses pessoas,  com participação nas relações diplomáticas brasileiras, a participarem do debate onde nasceu a ideia do artigo.  Todas as pessoas ligadas a política internacional de maneira institucional durante o período da Nova República. No momento de crise que nós estamos vivendo, no momento de absoluta a agressão aos princípios da civilização, ao princípio de proteção da vida, aos princípios da democracia, nesse momento tão crítico, nós temos que colocar as diferenças de lado, não esquecer delas, mas no momento, eu acho que não é disputa, o momento é de unir todos os aqueles que desejam o Brasil verdadeiramente democrático. 

Índio: O artigo é um documento histórico e demonstra a importância do que o ministro diz,  no momento como esse, com todos os problemas, mesmo havendo diferenças políticas entre os signatários, o que reflete as diferenças políticas mais amplas do nosso país,  nós temos de unificar todos os setores democráticos da nossa sociedade é porque não é possível que diante de uma crise sanitária, de uma crise econômica, de uma crise social, manter um governo que aprofunda a crise política que ele mesmo ele mesmo cria. O Brasil mesmo nos governos anteriores, até na  ditadura militar, teve relativa independência, o caso como bloqueio a Cuba, por exemplo. O governo teve altivez em diversos momentos atuando em uma política independente, agora a gente vê essa submissão absoluta com relação ao Trump. 

O senhor foi ministro de estado em três governos, têm muita experiência com este tipo de reunião.Gostaria que o senhor comentasse sobre o conteúdo da reunião ministerial de Bolsonaro, que foi publicizada. 

Celso Amorim – Aquilo não existe. Mesmo se eu tivesse o talento, que eu não tenho de Bertolt Brecht, não conseguiria imaginar algo assim, acho que as pessoas também não acreditaria. Não é exagero, nunca vi algo deste tipo. É uma coisa inacreditável, quanto ao conteúdo, nem preciso falar, veja as declarações do Ministro do Meio Ambiente, por exemplo, “vamos aproveitar o coronavírus para passar uma boiada”. Isso tem haver com  os bois entrarem na terra dos índios. Isso tem uma repercussão horrível para o Brasil. Estas são questões muito complexas com que o Brasil tem de lidar, não dá para ser tratado assim. Recentemente ocorreu uma reunião convocada por Macron para tratar do tema Amazônia, e o Brasil não foi convidado, mesmo tendo ¾ da Floresta Amazônica em seu território, não pode convidar porque o Brasil, com este governo, estraga a reunião, isso é muito triste. Não pode ser chamado porque não age de acordo com os princípios da civilização, não só não age dentro destes princípios quanto é uma ameaça aos mesmos. Na realidade temos grandes ameaças, uma é os EUA, que está em convulsão, está em um crise política, assim como o Brasil. Isso é uma coisa não sei o que que vai acontecer, talvez venha desses protesto em uma coisa realmente positiva, uma mudança importante. Porque os Estados Unidos são importantes,  a gente não pode ignorar, mesmo por se tratar de um império,  eles são um país que estão lá,  e continuarão exercendo grande influência no mundo. Não dá para tentar substituir um país pelo outro, o que podemos fazer é procurar um mundo mundo multipolar, onde haja equilíbrio de forças. Em muitos aspectos Estados Unidos, são exemplo positivo, tiveram dois chanceleres negros, tiveram mulheres ocupando estes cargos, tiveram um presidente negro.  Eles têm também lados positivos, agora uma coisa é o povo outra coisa e o sistema capitalista, o capitalismo financeiro que domina tudo e as atitudes egoístas do governo norte-americano, como o apoio oficial a ações de praticamente pirataria em relação a equipamentos de saúde, levando às últimas consequências o lema “América primeiro”, assim como o bloqueio à Cuba e à Venezuela em plena pandemia, contrariando as leis internacionais,  inclusive contrariando o apelo do secretário-geral da ONU, o apelo do Papa em relação à suspensão de todas essas questões enquanto durar o coronavírus. 

Agora o Brasil também passa a ser uma ameaça. Além de um pária nas relações internacionais, uma ameaça às mesmas. Vejam bem, o próprio Trump está organizando um encontro de chefes de estados, chamado G11 e não chamou o Bolsonaro.  Outro exemplo, o presidente da Colômbia, que não pode ser acusado de esquerdistas, é um sujeito explicitamente de direita, convidou os presidentes da América do Sul para tratar de cooperação em relação ao combate ao Coronavírus, e não chamou o Brasil. Não chamou porque não pode chamar, porque o Brasil polui qualquer reunião, contamina.

Índio: Muito clara a caracterização que o senhor faz da política externa do Governo que também é uma continuação da política interna e o risco que Bolsonaro causa hoje para a população brasileira, já temos milhares de mortes. Uma das coisas que cabe comentar sobre aquela reunião ministerial, é que você faz uma reunião de todo o governo, em plena  pandemia e não se fala nada da pandemia, só o comentário do Ministro do Meio Ambiente, que falou em “passar a boiada”.

O senhor passou rapidamente pela questão do bloqueio econômico e a guerra econômica, em particular contra Cuba e Venezuela, claro que tem a situação no Irã e em outros países, mas estamos falando aqui da nossa América Latina e Caribe. Recentemente, o governo Bolsonaro expulsou o corpo diplomático da embaixada da Venezuela no Brasil, despertando o direito internacional, respeitando a Convenção de Viena, e expõe muitos brasileiros que vivem na Venezuela, que não tem nenhuma representação, não além do próprio governo venezuelano. Eu gostaria que o senhor comentasse esta situação, que me parece extremamente grave. 

Celso Amorim: Tudo isso é gravíssimo, para começar tudo isso não pode ser tratado como um mero um impulso, do tipo “deu a louca”. Isso faz parte de um contexto mais geral, o Trump tem afirmado que irá utilizar de “todos os meios necessários” para derrubar o Maduro. Existem três fatores, primeiro o indiciamento do Maduro como narcotraficante, uma coisa totalmente absurda, do ponto de vista interno norte-americano isso tem muito apelo tem muito apelo para uma eventual intervenção. Depois oferece uma recompensa de 15 milhões de dólares pela sua captura. Segundo, Pompeu descarta o Juan Guaidó e aponta que a saída é uma eleição onde não participem nem Maduro nem Gauidó. Isso significa que ele está contando com alguma traição, no segmento militar, por exemplo. Em terceiro lugar, o desdobramento naval norte-americano para a costa do Caribe, até perto da Venezuela. O chefe do estado-maior conjunto norte-americano disse ele que é o maior a maior operação militar contra narcotráfico que já havia sido feita, ocorreu outra no passado com o Noriega, no Panamá, que foi derrubado. Então tudo isso é preocupante.

Voltando a questão que você colocou, este acontecimento é uma violação dos princípios básicos da diplomacia.  Claro que os países podem, em certas circunstâncias, declarem alguém como “persona non grata”, porém a própria Convenção de Viena estabelece que se isso acontecer é preciso dar condições de segurança para retirar estas pessoa do país, e também não pode acontecer com um corpo diplomático inteiro, em meio a uma pandemia.

Agora, gravidade mais visível, do ponto de vista do nosso interesse, é a retirada dos diplomatas brasileiros da Venezuela. Eu tenho praticamente 50 anos de vida diplomática, eu não vi uma coisa destas. Quando ocorreu algum problema que seja o caso de retirar o embaixador, sempre se deixa lá uma encarregado de negócios, caso algum brasileiro preciso de passaporte, certidão de nascimento ou queira ser repatriado. Tem ainda a questão dos refugiados venezuelanos em Roraima, e que necessita de um canal entre os dois países, e que da forma como está dificulta muito este trabalho. 

Mesmo quando existe um caso extremo, os países que se retiraram deixam no local algum encarregado dos seus interesses, por exemplo,quando a Argentina rompeu relações com a Inglaterra e com o Irã, deixou o Brasil como encarregado de seus interesses estes países, o mesmo aconteceu quando os EUA romperam relações com Cuba, mas deixaram a Suíça como interlocutora em Havana. Só conheço uma situação desta em caso de guerra, e guerra envolvendo os dois países diretamente,  que mesmo quando a guerra é entre terceiros, você toma providências para proteger os seus nacionais, mantendo alguma parte do corpo diplomático, foi o caso do nosso embaixador durante o bombardeio de Belgrado pela OTAN, que se retirou da embaixada mas permaneceu na cidade. Esta expulsão do corpo diplomático parece ser um pedido do governo norte-americano, para mandar um recado que a coisa é séria, não é algo relacionado aos interesses brasileiros.  A cereja envenenada desta situação toda é o caso da tentativa de ataque dos mercenários, que tudo indica tem relação com o Guaidó. É uma vergonha absoluta, olha o seguinte, esse debate sobre esse aspecto eu ouvi até o meu antecessor, nós tivermos diferenças de vários pontos, mas eu o respeito como intelectual. Ele disse que “a agenda dos Estados Unidos para a Venezuela não é a agenda do Brasil”,  muito simples.  Fernando Henrique Cardoso, quando ocorreu o golpe em 2002 contra o Chávez, ele  não reconheceu.

Índio: Como o senhor avalia o mundo que se abrirá com a pós-pandemia?

Celso Amorim: Acho que podemos ter avanços, como ocorreram no pós-guerra, ao parecido pode acontecer depois coronavírus.  Podemos dizer no ponto de vista mais geral, como  mais controle do capital financeiro, menos ênfase no consumo, maior presença do estado, mais atenção os bens públicos. Além disso temos também a mudança geopolítica, algo que estava previsto que acontecesse, mas que foi acelerado e antecipado pela crise do coronavírus, que a ultrapassagem dos Estados Unidos pela China como a maior potência mundial, isso não pode deixar de ter reflexo e ao mesmo tempo também a China demonstrando, para usar um conceito norte-americano, seu “poder brando”, coisa que os Estados Unidos não tem ou não querem ter,  pelo menos no governo Trump, talvez mude caso ele perca as eleições, não sei.  Mas no momento atual quando Trump fala e pratica a “América em primeiro lugar”, não tem problema quanto a isso, também temos na nossa diplomacia o dever de defender os interesses brasileiros em primeiro lugar, mas isso pode ser feito de maneira solidária, de uma maneira que não agrida a vida dos outros.

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