O trabalho com resíduos e o resíduo do trabalho: um olhar introdutório sobre as cooperativas de catadores de recicláveis

O trabalho com resíduos e o resíduo do trabalho: um olhar introdutório sobre as cooperativas de catadores de recicláveis
Imagem: Comunicação da Intersindical
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Por William Azalim

Que o modo de produção vigente segue princípios alienantes não é novidade, desde os primeiros estudos sobre sua gênese. Novidade histórica, talvez, seja a preocupação com seus efeitos ambientais. Não que não saibamos, há tempos, que a questão ambiental é residual frente a questão econômica, no capitalismo. Porém, somente há algumas décadas, o esgotamento dos recursos e as implicações do modelo de industrialização socialmente adotado receberam certa atenção, dadas as possibilidades catastróficas que se avizinham.

Os resíduos, enquanto sobras da mercadorias consumidas, são entendidos, porém, enquanto possibilidade de reprodução econômica há mais de um século. A profissão de catador de material reciclável data do século XIX, assim como os princípios de uma economia circular, enquanto perspectiva de reaproveitamento na cadeia de valor. Porém, somente há poucas décadas, esses princípios tomaram forma de modelo econômico, enquanto promessa de um certo capitalismo verde, que conseguiria reverter as sobras em forma de matéria-prima e, assim, “resolver” o problema da demanda por recursos colocada pela produção capitalista.

Nesse texto inaugural, me proponho a uma pequena reflexão sobre o conceito de resíduo, como forma de iniciar um debate sobre sua centralidade no debate pela superação de um modo de produção alienante e suas consequências no mundo do trabalho.

A primeira questão, talvez, seria entender que o resíduo não é apenas uma categoria ambiental. No modelo tecnocêntrico industrial colocado, poderíamos dizer que a própria atividade humana é residual. Como postulava Taylor, em sua perspectiva de administração científica da produção, a variabilidade humana presente na produção é fruto da falta de uma ciência do trabalho. Em outras palavras, se há variabilidade é porque o trabalho não se encontra organizado de maneira suficientemente científica. A pessoa, nesse sentido, é compreendida como apêndice do maquinário e, por consequência, a atividade humana é um resíduo da tarefa produtiva colocada, como uma variabilidade desnecessária que deveria ser eliminada.

Não atoa a automatização é entendida por tantos grupos como uma forma de desempregar massas de trabalhadores. Ao avançar em artefatos técnicos que prometem “substituir” a força de trabalho humana, os gestores podem ser ver livres desse “mal”, dessa natureza incontrolável dos homens e mulheres, e apostar em maquinários e equipamentos “competentes”. Vale lembrar as primeiras manifestações de operários fabris que se propunham a quebrar as máquinas, como forma de tentar evitar a tragédia imposta pela substituição dos seres humanos pelas máquinas.

Seria, porém, essa a grande questão? As máquinas, fruto da criação humana, se voltaram contra nós e agora nos escravizam? Talvez, num modelo empresarial de gestão, sim. Máquinas não fazem greves, não tiram férias, nem adoecem.

Voltemos aos catadores, no entanto. Sabemos, hoje em dia, que existem muitas associações e cooperativas de catadores de materias recicláveis, e que essas utilizam máquinas em seu processo produtivo de separação e comercialização de resíduos. Seria essa uma contradição intrínseca desse modelo? Como muitos teóricos apostaram, seriam as cooperativas apenas uma linha acessória ao capital, que lhe permite uma sobrevida sem questionar suas contradições centrais? Aqui propomos uma reflexão introdutória.

Os catadores de rua, informais, em sua gênese, podem ser vistos triplamente como fruto de resíduos. Retiram seu ganha pão do resíduo da mercadoria, lidam com a questão ambiental, resíduo da questão econômica em nosso sistema, e existem justamente devido à existência de um resíduo do mercado de trabalho, enquanto pessoas que não se encaixam nos ‘moldes definidos pelos RHs das empresas’. Acontece, porém, que desde essa tripla limitação, fazem emergir uma forma positiva de trabalho, que garante rentabilidade e inclusão social, ademais de apontar possibilidades de redução dos danos ambientais postos.

Se considerarmos as cooperativas e associações, poderemos, ainda, falar de uma quarta condição de resíduo. Traduzida na frase “não no meu quintal”, o tratamento de resíduos acontece geralmente distante dos bairros onde há maior consumo e, consequentemente, maior produção de resíduos.

Numa sociedade fetichizada, ninguém suporta o trato com seu lixo. As cooperativas de catadores, assim, se encontram nas regiões afastadas dos centros urbanos, ou, em outros termos, nas periferias, resíduo da produção urbana capitalista.

Porém, desde seus espaços produtivos, organizam novas formas de trabalhar, que apontam reflexões interessantes. Tratemos, nesse ensaio, da questão tecnológica.

A linha de produção é uma criação atribuída à Ford. Se pensarmos como esse dispositivo serviu como um chicote moderno, que induzia um ritmo de trabalho maçante, como se ilustra no histórico Tempos Modernos, de Charles Chaplin, e como esse é um equipamento central em dezenas de modelos de automação, poderíamos condená-lo, então, ao hall das invenções abomináveis que serviram ao nosso processo de desumanização. Mas aí aparecem as cooperativas de catadores:

Em um grande número de experiências de trabalho coletivo de catadores, as esteiras de transporte são utilizadas enquanto equipamentos auxiliares à separação dos resíduos. Seria ela uma espécie de chicote masoquista dos próprios trabalhadores?

Não. E eis aqui nossa reflexão. Nessas experiências, em que a solidariedade é atributo do próprio modelo produtivo, a automação aparece enquanto possibilidade, dentre outras, de redução da carga horária de trabalho. Em uma cooperativa, a máquina não vem substituir a pessoa, enquanto apêndice do processo produtivo. Nelas, devido à certa apropriação, o paradigma é outro, e o humano se recoloca enquanto elemento central da produção. A esteira pode ser regulada, por exemplo, ao ritmo da trabalhadora com maiores restrições de movimento, respeitando os princípios de inclusão já colocados. Assim como para permitir turnos alternados de trabalho e reduzir a carga horária individual. Em termos mais gerais, é possível pensar uma organização do trabalho antropocêntrica, em que o trabalho humano deixa de ser resíduo de uma produção centrada no excedente.

Esse elemento seria, então, suficiente para escaparmos de uma perspectiva de capitalismo verde, apontada pela ideia de economia circular, e avançarmos para um modelo econômico não alienante? Voltaremos a essa questão.

Fonte: Olhar de Classe


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