A sociedade capitalista muda rapidamente. O que fazer nos sindicatos e movimentos sócio-políticos?

Imagem: Comunicação da Intersindical
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Por Reginaldo Moraes

Para começar com algo que todos sabemos: nos últimos 40 anos, mais ou menos, vivemos uma nova fase na história do capitalismo, em especial nas relações de trabalho e nas relações da classe trabalhadora com a política. No mundo e no Brasil. Vou alinhar de modo sumário algumas de suas características, apenas para contextualizar as consequências práticas que enuncio no final.

A fase histórica que vivemos pode ficar mais compreensível se a contrastamos com o aquilo que se chama de “30 gloriosos” do pós-guerra, o período da reconstrução dos capitalismos nacionais na Europa e no leste da Ásia, da criação do welfare state, da descolonização e dos estados desenvolvimentistas.

Este nosso novo período tem os seguintes eixos:

  1. Mudanças rápidas e profundas na organização de todo o sistema produtivo, tendo como resultado momentos de crescimento econômico precário e ciclotímico. Abre-se uma era de incerteza ampliada, insegurança. Uma era do medo generalizado.
  2. Uma ampliação das desigualdades quase sem igual na história do capitalismo, talvez comparáveis apenas ao seu momento de formação.
  3. Uma redução do Estado que se manifesta, sobretudo, na pressão sobre politicas publicas que refletiam conquistas seculares dos movimentos populares (saúde, educação, previdência, etc.)
  4. Mundo do trabalho pulverizado, fragmentado e… desnorteado.
  5. Um crescente movimento de restrições à democracia, mesmo à frágil democracia representativa que fora bandeira da reconstrução do pós-guerra.

Mas para entender o momento presente – e, principalmente, para entender os terremotos políticos do momento, faz falta observar os níveis inferiores da geologia. Os subterrâneos da sociedade. Só assim podemos entender este novo cenário –  o cenário que talvez possamos chamar de nova era de incerteza e insegurança.. Incerteza e insegurança que se manifestam de modo claro, agressivo e mesmo violento na Europa, nos Estados Unidos e, também, no Brasil, assombrando a sobrevivência não apenas dos Estados de Bem estar, mas a própria democracia e o próprio estado democrático de direito.

Em um livro famoso dos anos ‘40, Karl Polanyi apontava que a historia do capitalismo era marcada por um duplo movimento. De um lado, o movimento do moinho satânico do mercado, um movimento que deixado a si mesmo é predatório, destruiria a humanidade e mesmo o planeta. De outro, o movimento de autodefesa da sociedade, por vezes forjando alianças inesperadas, entre aristocratas e donos de terra e movimentos de trabalhadores, por exemplo. A tentativa de regular, civilizar o moinho do mercado.

Na análise de Polanyi eu destaco um elemento. É o efeito civilizador dos movimentos “de baixo”, a resistência popular que refreia os efeitos mais deletérios do moinho satânico do mercado. Foi essa resistência que conquistou politicas para moderar as contradições e os conflitos, as desigualdades, tornando viável algum grau de coesão e estabilidade politica. A conquista das politicas sociais, das regulações econômicas, da moderação do capital foi obra de sucessivas lutas de sindicatos, movimentos sociais, partidos reformistas.

Em certo sentido, foi esse movimento (que podemos chamar de esquerda social) que forçou a edificação de um estado de bem estar social e, com isso, coesão social e estabilidade politica indispensáveis para a sobrevivência  da democracia e do estado de direito.

Por isso, aquilo que chamamos de esquerda social – e a esquerda política, que a reflete nas lutas eleitorais e no plano das leis – é um alicerce fundamental e vanguarda do Estado de Bem estar e do próprio estado democrático e dos direitos civis.

A questão que surge é esta: o que acontecerá ao welfare state e à própria democracia se essa força civilizatória enfraquecer?

A pergunta faz sentido sobretudo porque parece que é esse o cenário que vemos cristalizar-se nas ultimas quatro décadas: a erosão da base social da esquerda política. E isso pode ser o prenuncio de uma tragédia.

A base social dos partidos de esquerda – comunistas ou reformistas, socialistas, trabalhistas – foi desde o começo o proletariado industrial. Mais exatamente, a classe operária concentrada em grandes empresas. Desde as usinas públicas até as fábricas privadas. A frase de Lenin é conhecida: o capital concentra para explorar, essa concentração se torna a base da escola de política do proletariado.

A evolução do capitalismo das ultimas décadas – com a automação, as reformas liberais, a reengenharia das empresas – conduziu a uma redução e fragmentação da classe trabalhadora e a uma pulverização politica das classes populares. Isso enfraqueceu seus organismos de luta e formação de ideologia, os movimentos e sindicatos que são (ou eram) escolas politicas de massa.  E essa nova condição enfraqueceu os partidos reformistas de vários matizes – comunistas, socialistas, socialdemocratas, trabalhistas, ou democrata-cristãos reformadores.

Esse recuo abre caminho para um fenômeno recente de enorme perigo, a migração desses contingentes populares para dois comportamentos políticos perigosos. Um deles é o apoio a candidatos e partidos de ultra-direita. O outro, uma enorme abstenção politica, o alheamento, quase tão perigoso quanto o primeiro. Em praticamente todas as eleições dos últimos quarenta anos, em quase todos os países, a abstenção tem crescido – e, sobretudo, tem crescido precisamente no eleitorado potencialmente próximo da esquerda.

Vou repetir e sublinhar, para concluir esta primeira parte do argumento Essas bases sociais e essas correntes politicas foram o esteio da reforma do capitalismo e da conquista da democracia moderna – dos direitos sociais e civis. A era da fragmentação, do absenteísmo, da desesperança e do medo podem nos levar a um terrível pesadelo – não apenas o desmanche de politicas públicas e redes de proteção social, como uma erosão do próprio estado democrático de direito.

Características e vetores de força do novo período

Para entender e enfrentar esse novo período, é preciso estar atento ao movimento que forma nossas ideias e sentimentos, aquilo que molda a nossa compreensão do mundo e nossos valores, inclinações. A forma como vivemos determina profundamente a forma como pensamos e sentimos.

No capitalismo, sempre houve dois espaços fundamentais para a reprodução do capital (o produto econômico) e para a formação dos sentimentos, do senso comum que embasa a vida cotidiana, que a governa (o produto ideológico). Esses dois espaços são:

  1. O mundo do trabalho.
  2. O mundo da reprodução da força de trabalho (consumo, família, comunidade).

E esses dois espaços mudaram radicalmente nos últimos 40 anos. 

O que houve no Mundo do trabalho? No mundo inteiro, inclusive no Brasil, três vetores objetivos provocaram a mudança nesse campo:

  1. As reformas macroeconômicas liberais – privatizando e desregulamentando, afetando radicalmente o meio em que vivemos, o modo como sobrevivemos, inclusive a nossa relação com os bens e serviços públicos;
  2. As reformas microeconômicas, a reengenharia das empresas. Produzindo deslocalização, fragmentação, terceirização e esfrangalhamento de categorias profissionais inteiras. Uma fragmentação espacial, social, ideológica e política da classe trabalhadora;
  3. A automação – que não apenas enxuga os postos de trabalho, mas viabiliza a fragmentação espacial e social da classe trabalhadora.

E no mundo da reprodução social, da reprodução das famílias trabalhadoras?

O mundo da reprodução também passa por uma radical virada. As politicas públicas e sociais que haviam sido impostas ao capital tinham feito que muitos bens essenciais mudassem de forma – passavam da compra-venda (compra no mercado) para a oferta via politicas publicas, para o universo do “consumo coletivo” (educação, saúde, moradia, transporte, etc). O desmantelamento do Estado de Bem-Estar e das políticas públicas inverte o quadro, é uma revanche do capital. Voltamos cada vez mais para um quadro da compra-venda desses serviços, que deixam de ser direitos de cidadão e passam a ser bens comercializados. Vivemos assim, no cotidiano, uma relação de mercado generalizada com educação, saúde, transporte, água, vida…. E essa nova condição material tem profundas implicações para a formação das ideias, sentimentos, predisposições políticas.

Ao lado desses fatores objetivos, existe o que se pode chamar de fator subjetivo. Os fatores objetivos criam as condições de emergência de novas correntes ideológicas e politicas. Criam a demanda. Mas não as condições de sucesso dessas correntes. O sucesso depende de um movimento da oferta: o empreendimento das organizações ideológicas capitalistas – da mídia e das igrejas, por exemplo. Dos aparatos ideológicos de reprodução do mando e da submissão. A mídia cria um quadro de sentimentos e percepções, de valores, pelo canal virtual, a tela. O culto semanal (e as atividades outras) criam o espaço presencial de reafirmação e cimentação desses valores e orientações.

Conclusão prática?

Qualquer articulação progressista – sindicato, movimento, partido – precisa operar em DUAS frentes, para combater essas tendências reacionárias:

  1. Criar condições menos inseguras para o mundo do trabalho e menos mercadorizadas para os serviços públicos. Lugar pela coletivização dos contratos de trabalho e pela socialização dos serviços. “Abandonar as ilusões sobre sua condição exige abandonar uma condição que necessita de ilusões”. Conservar as trincheiras existente, conquistar novas. Nenhum direito a menos.
  2. Criar empreendimentos de luta ideológica cotidiana, capilarizadas, distribuídas palmo a palmo. É quase como criar uma alternativa às igrejas – que se propagam como se fossem franquias ou lojas de conveniência 24 horas. É provavelmente nessa direção estratégica que os sindicatos precisam se renovar, criando seus parceiros e, quem sabe, seus sucessores como escola de política cotidiana e de formação de comportamentos e valores. Por exemplo, ao invés de fechar sub-sedes nos bairros, dar a elas novo papel. Expandir pontos múltiplos, modestos, mas abertos e plurais. É preciso ter políticas para essa metamorfose, caso contrário as velhas máquinas serão tragadas pelos gafanhotos.

Fonte: Carta Maior

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