Paulo Kliass | Levy: a paixão pelo desastre

Imagem: Comunicação da Intersindical
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Em viagem recente por alguns países da Europa, o Ministro Joaquim Levy deixou escapar mais algumas pérolas a respeito de sua mais autêntica interpretação dos fenômenos econômicos e sociais. Durante sua passagem pela Espanha, encontrou-se com autoridades governamentais, inclusive o Ministro das Finanças. E deitou falação a respeito do duro processo vivido pelo povo daquelas terras.

As dificuldades enfrentadas pela nação espanhola ao longo da última década são bastante conhecidas de todos os que acompanham a evolução da crise da União Europeia, em especial seus reflexos sobre os países da chamada “periferia” do velho continente. A desigualdade de tratamento conferida aos países membros do bloco tem sido flagrante. Alemanha e França, por exemplo, foram bem menos prejudicadas do que as imposições feitas a Portugal, Grécia e Espanha.

No entanto, a visão que foi difundida pelo mundo afora, a partir das informações prestadas pela tecnocracia de Bruxelas, parecia se referir a outra formação social. Os representantes do financismo e aqueles que compartilham da cartilha da ortodoxia econômica se recusam a encarar o mundo tal como ele se apresenta. Aquela velha estória de espancar a realidade até que ela se encaixe no meu pré-conceito. Contentam-se com números manipulados e modelos distantes da realidade, de forma a justificar a política econômica em favor dos 0,1% e contra a absoluta maioria do povo.

Mas Levy parece mesmo não ter papas na língua:

“Espanha é referência de uma política de ajuste bem sucedida”.

Não cabe aqui discutir os equívocos que foram cometidos ao longo de todo o período da euforia do também chamado “milagre econômico”, que os vizinhos de Portugal conheceram a partir da década de 1990. O importante a reter é que, a partir do momento em que o país ingressou na união monetária do euro, tornou-se refém das determinações estratégicas decididas nos gabinetes dos responsáveis pela política econômica em âmbito europeu.

O período áureo do apogeu do neoliberalismo confundiu-se com a tentativa de alavancagem da economia e da sociedade espanholas. As receitas foram aquelas conhecidas de todos nós: i) desregulamentação dos instrumentos públicos; ii) privatização das empresas estatais; iii) internacionalização das atividades econômicas de forma geral; iv) avanço da financeirização e hegemonia completa do setor financeiro; v) mercantilização paulatina dos serviços públicos; vi) precarização das condições de salário e emprego.

Surfando nas ondas de expansão que o mundo capitalista oferecia a seus parceiros, a Espanha também experimentou taxas de crescimento do PIB bastante elevadas para a média da região. Ocorre que as medidas básicas de precaução e cautela não foram adotadas para eventuais situações de dificuldade futura. A regra de “todo poder às forças de mercado” fazia valer toda a sua força. Nada de amarras ao empreendedorismo do capital privado! Fora com todo tipo de regulação do setor público! E todo esse blá-blá-blá liberalóide tanto irradiado também por aqui, que termina por fragilizar toda a capacidade de reação da política pública quando ela se fizer necessária.

E com isso, a sociedade se pautava por um otimismo exagerado, como que anestesiada, pelos resultados imediatistas obtidos pelo modelo de Bruxelas. Os principais partidos alternavam-se no poder (PSOE e PP), mas a política econômica pouco se alterava. Não importava se a vitória eleitoral era de uma agremiação que se dizia socialista ou de outra marcadamente liberal.

As dificuldades vieram à tona com mais força a partir de crise de 2008. Uma parte do castelo de cartas começa a se desfazer. A bolha da valorização imobiliária irreal era a face visível do iceberg da especulação generalizada.  E dá-lhe determinação da tecno-burocracia econômica para receitar a lista de remédios amargos. Assim, para o regojizo de Levy:

“A Espanha teve determinação de cortar gastos e ajustar receitas durante a crise e agora cresce”.

Os resultados da política de austericídio determinada pela troika europeia e implementada pelos sucessivos governos de Madrid só proporcionaram o aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas. Como conhecemos bem por aqui em nossas praias, a recomendação de sugar o máximo de superávit primário retirou recursos vultosos das áreas sociais e de investimento do orçamento público para assegurar o pagamento de juros e serviços da dívida pública.

A partir de 2009 seguiram-se 5 anos consecutivos de recessão econômica, com índices negativos para o PIB. O período registrou uma média anual de -1,5%, em contraste com a década anterior, que havia apresentado um crescimento médio positivo próximo a 4%.

Os reflexos da estagnação econômica sobre as dimensões sociais foram dramáticos. O desemprego saltou do já elevado patamar médio de 9% observado entre 2001 e 2007 para níveis alarmantes a partir de então. Chegou a atingir 26% em 2012 e 2013, com a particularidade de que o índice chegava a 50% entre os mais jovens.

Não foi por mera coincidência que, também na Espanha, o enorme esforço nacional para cumprir a “austeridade fiscal” beneficiou apenas e tão somente o financismo. Não obstante a enorme drenagem de recursos da economia real para o parasitismo do setor financeiro, o endividamento público continuou crescendo. Entre 1995 e 2007 foram anos seguidos de extração de superávit primário, chegando a atingir 4% do PIB.  Mais uma vez a tragédia da armadilha da dívida revelou toda a sua perversidade, uma vez que a participação do endividamento público no PIB saltou de pouco mais de 36% em 2007 para quase 100% em 2014.

E Levy mal consegue conter seu entusiasmo:

“É muito interessante ver todo esse crescimento ao longo dos anos, e a energia e responsabilidade de tomar medidas corretivas quando necessário para garantir a continuidade desse processo que vimos transformar a vida dos espanhóis.”

Fica-se com a impressão de que nosso ministro esta se referindo a outro mundo. Um quinquênio de recessão transforma-se em “crescimento ao longo de anos”. O aprofundamento do quadro dramático das condições de vida e trabalho passa ser identificado de forma maldosa como o “processo que vimos transformar a vida dos espanhóis”.

O maior problema, no entanto, não se refere ao eventual mal-estar causado por esse discurso de Levy à maioria do povo espanhol, que vem demonstrando vontade de mudar seus dirigentes políticos. Estão aí os resultados dos pleitos para as prefeituras de Madri e Barcelona, bem como a recente indicação de Piketty como conselheiro do “Podemos”. O grande risco para o Brasil reside na persistência e obstinação dos agentes do sistema financeiro em manter a opção por esse modelo, que não deu certo em lugar algum dentre os tantos por onde foi ensaiado.

Não somos poucos os economistas que estamos alertando para os enormes riscos envolvidos com tal estratégia de ajuste macroeconômico. A persistência de um modelo que penaliza a maioria da população em nome da defesa dos interesses do financismo não se justifica. A opção pelo austericídio já começa a demonstrar a crueldade de seus resultados. O fato é que combinar taxas oficiais de juros nas alturas com medidas de incentivo à recessão das atividades econômicas só faz aprofundar a gravidade da crise. No entanto, ao contrário do que nos bombardeiam cotidianamente pelos meios de comunicação, é preciso resistir e mostrar que – sim! – existem alternativas.

 

Não é segredo para ninguém que o caminho passa pela ampliação da base tributária em sentido oposto à natureza regressiva de nosso sistema atual de impostos. Temos muito espaço ainda não atingido pela arrecadação. O cardápio de alternativas é amplo e variado: volta da CPMF, Imposto sobre Grandes Fortunas, Imposto sobre Heranças, Imposto Territorial Rural, imposto sobre exportações de “commodities”, fim da isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos, ampliação da tributação dos lucros das instituições financeiras, entre tantos outros. Há ainda muito espaço a ocupar no vácuo da não-tributação do patrimônio e do capital.

Pelo lado da redução das despesas, o caminho deve ser iniciado pelo absurdo volume despendido com pagamento de juros da dívida. Esse, sim, é o tipo de gasto público que merece uma atenção especial e deve ser reduzido drasticamente. Ao contrário do regime previdenciário, que segue em equilíbrio financeiro e atuarial, a conta dos juros é absoluta e estruturalmente deficitária. A primeira medida deveria ser a redução da taxa oficial de juros, pois a cada decisão do COPOM de aumentar a SELIC significa dezenas de bilhões de reais que se somam ao total do gasto parasita. Além disso, faz-se necessária e urgente uma auditora de nossa dívida pública, para que se tenha efetivamente um diagnóstico das causas de seu crescimento e a legitimidade de seus compromissos financeiros. Finalmente, a imposição de um limite legal ao dispêndio com juros. Da mesma forma que há uma meta para inflação ou um limite máximo para gastos com pessoal.

Enfim, um conjunto de tarefas que não cabem exatamente no manequim de um personagem que se identifica mais com os interesses da banca do que com as necessidades da maioria de nossa população.

*Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Fonte: Carta Maior
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

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